sábado, 27 de setembro de 2008

Dia bom de nunca ter sido

O dia brigando com um antigo projeto de artigo. Como escultura de argila que não deu certo e que mesmo assim insistimos em dar forma. Amassa dali, molha mais um pouco, alisa, mas não há como salvá-la de si mesma, do contrário deixaria de ser para ser outro.
Mais um dia que escorre nesse meu universo diminuto: minha escrivaninha, o computador, a vista para o prédio ao lado, o sol que reflete na fachada do edifício da outra margem da rua, o mural de cortiça com a moldura pintada de guache verde.
Oito e meia, tigela de mamão, maçã e iogurte; o toque do celular; nada que comece com "não é nada grave" pode ser bom. Minha vó, minha Aurora e aurora do meu mundo caiu novamente. Noventa anos e nos últimos três, três quedas: o fêmur, o punho, agora o outro fêmur.
Vejo ela daqui, no mesmo quarto da clínica, sobre os lençóis gastos, a bandeja da refeição que mal desce. Lembro dos gemidos e de todas as suas expressões de dor que eu não conhecia até a primeira queda. Vivo tudo novamente mesmo não estando, dói-me mas como só escuto o som da minha lembrança dói-me menos. Não me rasga.
Reluto em admitir, mas a verdade é que não gostaria de estar lá agora; ela tem meu pai e o conforto da presença do filho querido, e minha tia e o cuidado da filha incansável. Eu pouco faria, pouco sou diante dela. Vê-la frágil é sempre me estilhaçar um pouco mais e fazer-me forte para juntar-me e carregá-la para onde nem eu sei.
Hoje o que eu queria é que o telefonema não passasse de brincadeira sem-graça, que minha vó estivesse deitada em sua cama, lendo ou costurando, e eu ganhasse uma passagem de avião para Salvador, chegasse de surpresa e me acomodasse na beirinha da cama. Beijaria seu rosto, muito e muito, como sempre faço, passaria a mão nos cabelos prateados, nas rugas, minhas velhas conhecidas, e ficaria ali até que bastasse.
Ficaria melhor se hoje não tivesse sido.

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