sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Praça do sebo, mate com leite e o circuito de poetas do Recife




DOMINGO NO RECIFE

O número encarnado no calendário
retalho do vestido esvoaçante
na tarde de regata, derradeira mancha de sangue,
o corpo recomposto nessa mancha
deslizando na superfície do domingo.

Domingo urbano colorido de acácias,
que acharam nesta floração apenas
as sombras dos antigos namorados.
(Ó pedra tumular do banco do jardim público.)

Dia nítido lavado pelo Capibaribe,
o rio ninando o Recife.
o Recife criança em seus braços maternos.
Domingo de várias ressurreições, da mãe levando o menino para a missa,
do primeiro cinema impróprio para menores,
do circo, do clarinete de "seu" Miguel.

Domingo colonial imutável no bairro de São José.
Vêm da igreja a música do órgão e as vozes femininas de dois séculos.
Um vôo de pomba acaricia o espaço quieto.
O Espírito Santo baixará no Pátio de São Pedro.

Domingo feito de silêncio e sombras descendo a escada,
perturbas somente a paz dos arquivos,
libertas o tempo prisioneiro nas gavetas.
As palavras das cartas soam como vozes,
as dedicatórias saem do mutismo
da caligrafia para os lábios úmidos dos retratos.

Exuma-se o baralho
na mesa de jantar (as primas em dezembro)
os valetes dormindo para sempre,
as damas louras consumidas.

Vejo do cais da Rua da Aurora,
— o domingo fugindo nas ioles,
na cor da tarde, no vôo dos passarinhos,
na bicicleta de Suzana.

Assisto ao suicídio do domingo no Recife,
o domingo jogando-se da Torre do Diario,
na música do carrilhão batendo meia-noite.

Receio de entrar na madrugada fria.
Recolho na praça as horas despedaçadas.
Quero que este domingo seja a antecipação da eternidade.

Mauro Mota, pernambucano de Nazaré da Mata



Hoje não era domingo e eu não estava a passeio, mas qualquer ida ao centro do Recife pode virar, sem quê nem pra quê, uma surpresa. Da Faculdade na Boa Vista ao cartório Maciel em Santo Antônio, vou passando pela Rua da Aurora, desviando do povo que vai e vem, saltando as poças de água suja e mal-cheirosas, em meio a uma profusão de ambulantes e seus quitutes - tareco, churros, torteletas de brigadeiro, biscoito de povilho, frutas, milho assado, pipoca doce, salgada ou achocolatada.

Cumprido o compromisso, vem o convite para tomar mate com leite. Convite aceito. Atravessa a rua, corre do ônibus que vem à toda, anda mais um pouco e como se houvesse um portal mágico chegamos a uma pracinha espremida entre prédios velhos, mal-cuidada, pouco iluminada mas recheada de livros ---- uns dez ou mais sebos.
No centro, o poeta não pode ler seu jornal - um ambulante colocou seu estoque de cintos naquele suporte improvisado. Justo. O que poderá dizer o jornal de hoje a ele, ou o de qualquer dia. É Mauro Mota, em uma das estátuas do circuito de poesia do Recife.
Depois numa biboca ali perto, tomamos mate e derramamos conversa a toa. Já é meio dia e o movimento não pára: cachorro quente, bolo, suco, pastel, coxinha. Enquanto isso, aqui, o mundo passa devagar.
Volto para casa de Setúbal pensando na vida triste de estátua, na sua eternidade perante o jornal de concreto, e que qualquer dia desses volto lá e sento ao seu lado e dividimos o poema, a tristeza, e o tempo que corre, mas que aqui apenas passa.

PS: Aqui dá para escutar o poema declamado...
PS: Procurando uma foto da estátua de Mauro Mota, achei esse blog que coleciona fotos das pessoas junto com estátuas pelo mundo afora. Gostei, só isso---
PS: A foto é de Renata Beltrão (achei no Flickr)

Por fim um vídeo com uma reportagem muitíssimo bem feita sobre o circuito dos poetas que achei nesse blog aqui (que por sinal, foi direto para os favoritos)


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