quarta-feira, 11 de junho de 2008

Neoliberalismo e o capitalismo do desastre: nosso futuro nas mãos das grandes corporações (dêem adeus ao Leviatã)



Reportagem da Revista Cult.


Resistindo ao choque

A jornalista e ativista canadense Naomi Klein analisa o novo estágio do capitalismo pós-11 de setembro: a privatização do desastre


Por Eduardo Socha


Seu nome circula em todo debate que questiona a arrogância do pensamento único e a imposição do neoliberalismo como modelo econômico irrevogável na era da globalização. Naomi Klein, 38, tornou-se mundialmente conhecida depois do sucesso de Sem logo - A tirania das marcas em um planeta vendido. Lançado em 2001 e traduzido para 28 idiomas, o livro superou a marca de um milhão de cópias vendidas, fato surpreendente para um volume de 500 páginas que se propõe a denunciar em detalhes os efeitos nocivos do branding, além das práticas de extorsão e exploração do trabalho de corporações como Nike, The Gap, Microsoft e McDonalds. Tornou-se rapidamente um dos maiores manifestos do movimento anti-globalização

Dois anos após o lançamento de uma pequena coletânea de artigos escritos para imprensa, Cercas e janelas, chega ao Brasil a tradução de seu terceiro livro, A terapia do choque - A ascensão do capitalismo do desastre, resultado de mais de seis anos de pesquisas sobre as reações de governos alinhados à ideologia neoliberal aos desastres cada vez mais freqüentes - da guerra no Iraque ao tsunami. A autora analisa a estreita relação dessas reações com a teoria dos choques econômicos proposta por Milton Friedman, prêmio Nobel de Economia em 1976 e um dos fundadores da ortodoxa Escola de Chicago; teoria esta que, segundo a autora, guardaria semelhanças assombrosas com as técnicas de tortura da CIA, descobertas há pouco tempo.


CULT - Um dos principais objetivos do seu livro é mostrar que os conceitos de neoliberalismo e democracia são internamente incompatíveis, certo?

Naomi Klein - O propósito principal do livro é contestar a alegação central da máquina de propaganda neoliberal, que procura identificar pessoas livres com o que eles chamam de mercado livre. Tento mostrar que democracia e neoliberalismo entram diretamente em conflito.

(...)

Não considero o Katrina um desastre "natural" porque foi envolveu uma clara omissão do Estado - no sentido de que as barragens estavam deterioradas. Imediatamente depois do ocorrido, um político republicano, Richard Baker, disse "não pudemos limpar os projetos de conjuntos habitacionais, mas Deus fez isso por nós". Isso é o capitalismo do desastre! É uma idéia muito velha, que já existia na mentalidade colonial. Na América do Norte, os colonos que ocuparam a Nova Inglaterra tinham uma teoria religiosa sobre a varíola, pois a causa principal de mortalidade dos índios era a doença. Nos diários da época, falava-se da moléstia como uma dádiva de Deus. De diversas maneiras, estavam usando a mesma formulação que o político republicano. Quando a varíola acabou com diversas comunidades do Iroquois e a terra deles foi invadida pelos colonos, Deus foi invocado, e o desastre foi visto com um ato divino. Então, sim, isso não é novidade [ risos]. Mas, o que há de novo aqui, e que vimos em Nova Orleans, é que não apenas o desastre foi utilizado para a privatização do sistema educacional e habitacional, mas a resposta ao próprio desastre foi vista como oportunidade de mercado. E essa é realmente a última fronteira para o neoliberalismo. Todas as partes do estado foram privatizadas: estradas, eletricidade, telefone, água. Havia sobrado apenas as funções fundamentais: os militares, a polícia, os bombeiros. Mas agora estamos assistindo ao surgimento de um complexo do capitalismo do desastre: negócios que dependem diretamente desse conjunto de crises e desastres. Bombeiros privados, empresas como a Blackwater [ empresa militar privada], que apareceu em Nova Orleans pronta para substituir a policia, o Helpjet, um serviço que proporciona um plano de fuga rápido e luxuoso, com direito a limosine, no caso de furacão. Acho que estamos vendo isso agora na crise dos alimentos, no sentido de que esse desastre torna altamente lucrativo o setor corporativo do agrobusiness. Acho que precisamos entender os desafios que enfrentamos, principalmente relativos à mudança climática. Está muito claro que existe uma parcela da economia cujo desempenho é favorecido conforme a situação piora. Não são apenas as empresas de armamentos. São as companhias de petróleo, de agronegócios, de biocombustíveis, farmacêuticas, empreiteiras, companhias de segurança. Precisamos mapear essas empresas que, com um lobby poderoso, impedem mudanças efetivas para nos tirar desse processo de crises contínuas

(...)

Quando a guerra do Iraque começou, os argentinos fizeram comparações entre o que aconteceu no país nos anos 1970 e o que estava acontecendo no Iraque. Foi isso que me fez querer entender as conexões entre os diversos tipos de choque, pois já estavam sendo feitas nas ruas da Argentina. Era uma maneira nova de interpretar a história - eu sabia da ditadura militar, mas não sabia que a agenda econômica era tão clara. No livro cito a carta aberta de Rodolfo Walsh à Junta Militar. Naquele tempo, em Buenos Aires, essa carta tomou vida própria: era lida em parques, assembléias de bairros, na frente das casas de generais, no rádio. Isso me fez querer entender essas conexões e querer viajar ao Iraque. Alguns amigos jornalistas argentinos, especialmente Claudia Acuña, descreveram como era difícil perceber as razões por trás do terror quando se está vivendo a situação. No momento em que dizia isso, Paul Bremer chegava ao Iraque e anunciava uma transformação econômica radical, dizendo que o país estava aberto para negócios. Mesmo assim, toda a atenção jornalística estava concentrada na guerra e não no programa econômico. Então senti que, depois de ter aprendido essa lição na Argentina, tinha a responsabilidade, como jornalista e escritora, de ir ao Iraque e pesquisar a verdadeira causa da violência. Foi depois dessa experiência que li o manual de interrogatório da CIA, pois eu estava no Iraque quando estourou o escândalo de Abu Ghraib.

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